Recém-chegados do Brasil tiveram que enfrentar perseguições de chefes, veteranos e não aguentaram as dificuldades da convivência com os colegas

 

 

 

 

Texto: Ana Paula Ramos/Record TV Japan
Foto: ©Fons Heijnsbroek/Divulgação

 

 

 

A rotina de fábrica no Japão apresenta inúmeros desafios. O trabalho costuma ser cansativo, com jornadas longas e pode ser pesado a depender do tipo de serviço. Além das dificuldades naturais, há mais um acréscimo capaz de tornar o trabalho difícil de suportar: os conflitos das relações humanas.

 

O bullying, chamado de “ijime” em japonês, é algo muito presente nas escolas, do primário ao ensino médio. No entanto, a prática de maltratar e boicotar os colegas não se limita ao ambiente das crianças. Nos grupos de brasileiros no Japão nas redes sociais, não são poucos os relatos de trabalhadores que já viveram um inferno nas linhas de produção e muitas vítimas apontam que os agressores eram os próprios conterrâneos.

 

Quando o trabalho se transforma em uma selva, nem todos conseguem sobreviver. Alguns aguentam o máximo que podem, considerando os objetivos financeiros que os levaram ao Japão. Outros acabam desistindo do serviço e partem em busca de um ambiente mais amigável. Em muitos casos, a situação não se resolve até que alguém seja transferido da linha ou peça as contas.

 

De acordo com o portal Cheer, de aconselhamento de carreira, do grupo empresarial Staff Service, bullying no ambiente de trabalho é um tipo de assédio, que pode se encaixar como assédio moral. Ao passar por uma situação do tipo, a vítima deve evitar responder com violência ou de forma vingativa, sob o risco de piorar a situação.

 

O ideal é reunir provas, como mensagens de ameaças, laudo médico após ter sido agredido ou mesmo testemunhas. Se não resolver ao conversar com o chefe ou alguém superior ao chefe, é possível contar com a ajuda do balcão de consultas do Escritório de Inspeção de Normas Trabalhistas (Roudou Kijun Kantoku-sho). No entanto, as investigações podem ser demoradas e muitas vezes é difícil acabar com a situação incômoda a curto prazo.

 

Se nada resolver, as vezes não compensa continuar em um ambiente de trabalho que está causando sofrimento diário. Por isto, muitas pessoas desistem da vaga e procuram por uma oportunidade de emprego que permita exercer as atividades, ganhar dinheiro e viver em paz.

 

Fúria da veterana

 

A primeira experiência de trabalho ao chegar no Japão foi traumática para Rosa Kiyoko Yoshida, de 56 anos. Ela conta que firmou o contrato no Brasil e partiu para o arquipélago em 2019, para trabalhar em uma fábrica de automotores e também no setor alimentício em Aichi. Para a brasileira recém-chegada, os problemas começaram logo nos primeiros dias.

 

“As apresentações na empresa ocorreram normalmente, com orientações rigorosas. Quando fui conduzia ao setor, fui recebida por uma outra trabalhadora, também brasileira e foi aí que começou o meu calvário”, contou.

 

Rosa acredita que a colega se sentiu ameaçada com a presença dela e iniciou uma série de tentativas de boicotes, com a intenção de prejudicar as atividades da novata.

 

“Eu não conseguia fazer o trabalho direito. Nada dava certo porque eu estava fazendo tudo errado. Ela ficava chamando minha atenção. Depois de algumas conversas, descobri que ela estava com raiva por eu ter ficado no lugar dela na linha de produção. Passei a sofrer com atritos diários e xingamentos ofensivos”, relembra.

 

Ela chegou a consultar o “tantousha” (chefe de pessoal), mas não conseguiu resolver o problema com a colega. “Ele disse para eu trabalhar sem reclamar. Eu decidi que queria vencer e continuar o serviço apesar das adversidades”, comentou.

 

No entanto, o serviço durou apenas três semanas. “Na semana seguinte eu recebi um telefonema do tantousha dizendo que estava dispensada. A colega deu um jeito de me tirar do serviço. Senti que não tinha nenhum suporte e tive que me virar para achar outro trabalho”, lamentou.

 

 

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O bullying ficou no passado. Atualmente, Rosa trabalha em um lar de idosos na província de Mie e já não sofre mais os transtornos de antigamente. “Comecei fazendo faxina e hoje sou responsável pelo setor de alimentação. Estou aqui desde que saí daquela fábrica”, diz.

 

A experiência a deixou com a impressão de que falta união na comunidade. “A minha história é a mesma de muitos outros. O bullying vem dos próprios conterrâneos. São brasileiros contra brasileiros. Enquanto existir essa mentalidade teremos este tipo de atitude. Infelizmente a comunidade se nega a ser unida”, desabafou.

 

Perseguição do chefe

 

O início da vida no Japão também foi duro para Vanessa Saruhashi, de 42 anos. Ela veio por uma agência em 2018, para atuar em uma fábrica de componentes eletrônicos em Fukui, com uma proposta que parecia muito vantajosa.

 

“A empreiteira pagaria os trâmites do visto e daria um prêmio de ¥300 mil para quem ficasse no mínimo 6 meses. Tinha um kit de boas-vindas com utensílios domésticos e alguns mantimentos”, relatou.

 

A vaga também não exigia conhecimento no idioma japonês e quando chegou na fábrica, Vanessa foi para um setor em que passava por todas as etapas de produção, antes de definir o local onde ficaria na linha.

 

“Quando fui para a máquina, vi que tudo estava escrito em japonês e tive muitas dificuldades. O meu líder pediu para eu ir à uma sala e escrever quais eram os meus pontos fracos. Parecia que eu estava na pré-escola”, contou.

 

Depois desse episódio, Vanessa conta que passou a sofrer perseguição do chefe. “Ele dizia que as minhas peças eram feias e que eu estava demorando demais para passar para a próxima etapa. Chegou um momento em que eu chorava todas os dias”, lembrou.

 

A brasileira descobriu que não era a única. Ouviu dos colegas que o chefe costumava amedrontar os operários quando não gostava da pessoa.

 

“Aguentei por um tempo e depois disse a ele que eu não sabia o idioma e que não havia sido solicitado um teste ou a necessidade de ler, escrever ou entender japonês para o trabalho. Ele me levou ao chefe japonês e disse que tinha uma situação para resolver. Naquele dia, eu pedi demissão”.

 

Ela acabou tendo problemas em outros serviços depois desta fábrica. Um deles foi por ter sido demitida depois de ficar internada alguns dias com uma crise de bronquite asmástica. No fim das contas, Vanessa acabou decidindo voltar ao Brasil quando ficou grávida e já está há um ano em São Paulo com a família.

 

Bullying e abuso sexual

 

Laura (nome fictício) veio ao Japão aos 19 anos em 2016, para trabalhar em uma fábrica de faróis de carro em Shizuoka. A primeira experiência de trabalho no país dos antepassados foi traumática, com perseguição de uma colega e até um episódio de abuso sexual.

 

“Eu era uma das mais novas da fábrica e muitas pessoas me olhavam torto. Quando eu dizia que estava cansada, eles diziam que eu não podia, porque eu era nova. Tinha uma japonesa e um senhor brasileiro na linha. Não demorou muito e a japonesa começou a pegar no meu pé”, contou.

 

Logo no início, Laura lembra de um episódio marcante, provocado pela colega. “Era verão e só tinha um tubo de ar gelado e a japonesa virava para ela. Uma vez ela ligou para a mulher da empreiteira e disse que a linha estava fedendo. A mulher me ligou no meio do serviço para perguntar se eu sabia comprar um desodorante. Foi ridículo”, lembra.

 

Foram vários episódios pequenos de atrito com a japonesa e no meio dos conflitos, o colega brasileiro acabou se tornando um amigo. Até que passou dos limites.

 

“A gente trabalhava no turno da noite e saíamos às 3h da madrugada todos os dias. Ele era bonzinho comigo e não tive problemas no começo. A gente sempre passava na loja de conveniência e conversava um pouco antes de ir embora”, contou.

 

Em uma madrugada, o colega disse que passaria café em casa e convidou Laura para visitar. Ela foi sem pensar que ele poderia estar com segundas intenções. Quando estavam sozinhos no apartamento, Laura conta que o homem tentou agarrá-la e não queria deixar que fosse embora.

 

“Eu não sei se dei muita liberdade ou se ele entendeu errado. Eu fui ingênua, era muito nova e não tinha maldade. Foi uma experiência tão traumática que eu não cheguei nem a acionar a polícia, faltei o serviço por três dias e acabei desabafando com o meu pai”.

 

Por fim, a brasileira não conseguiu afastar o homem do serviço e foi embora da fábrica. “Faltava uns dois meses para terminar de pagar a passagem. Eu terminei e no dia seguinte o meu pai me buscou e eu fui embora”, diz.