Brasileiras que dedicam seu raro tempo livre para trabalhos artísticos contam como a atividade as ajuda a calibrar emoções, repensar prioridades, expressar sentimentos e refletir sobre a vida 

 

 

Texto: Gilberto Yoshinaga/Record TV Japan
Fotos: ©Ewerthon Tobace/Record TV Japan

 

 

Autoconhecimento, sensação de liberdade, catarse emocional, vontade de se expressar… Movidos por diferentes motivações, alguns dekasseguis dedicam seu raro tempo livre para produzir trabalhos artísticos. A maioria encara a atividade como um mero hobby ou “terapia”, mas a conquista de espaços em exposições vislumbra a possibilidade de que ela se torne uma fonte de renda extra – ou mesmo uma profissão.

 

Parte das obras artísticas feitas por brasileiros residentes no Japão pode ser contemplada até o dia 10 de novembro na quarta edição da mostra Expoart Brasil, nas galerias Manabu Mabe e Tomie Ohtake, na Embaixada do Brasil em Tóquio. Lá estão expostas de sete artistas e 17 alunos da curadora Paula Kakihara, 41 anos.

 

Paula Kakihara recebeu o prêmio Focus Brasil 2022 – Foto: ©Record TV Japan

“A arte revoluciona a vida das pessoas”, resume Paula, uma artista autodidata que teve sua própria vida transformada pelo fazer artístico. “A arte pode mudar vidas de diferentes maneiras. Pode elevar a autoestima, resgatar a motivação para viver, exercitar a criatividade, alimentar novos sonhos, desenvolver a sensibilidade e abrir janelas com novas maneiras de enxergar a vida e o mundo.”

 

Criada em uma família de amantes de arte – a avó materna era artesã e professora de pintura, ofício também exercido até hoje por uma tia -, Paula segurou um pincel pela primeira vez aos 9 anos. Aprendeu diferentes técnicas de forma autodidata e aprimorou-as fazendo alguns cursos no Brasil, mas até então não imaginava a atividade como uma profissão – possui formação em enfermagem.

 

Como a maioria dos dekasseguis, ela veio ao Japão para trabalhar em fábrica. Chegou em 2004, um ano depois de se casar, grávida da primeira filha – a segunda menina nasceu em 2006. “Quando elas começaram a crescer, voltei a pintar nas horas livres e comecei a me informar sobre lojas japonesas de artigos para pintura e sobre os produtos que existem por aqui”, recorda.

 

Professora ‘por acaso’

 

Ainda sem a pretensão de viver da arte, Paula começou a vender quadros. Na divulgação “boca a boca”, quando se deu conta, a clientela já era enorme. “Em 2017, me acidentei na fábrica e passei a pintar mais. Acabei vendendo 120 telas naquele ano e não voltei mais para a fábrica”, conta.

 

Em 2018, a artista decidiu compartilhar seus conhecimentos com mais pessoas e montou uma turma com quatro alunos. Novamente na base do “boca a boca”, muitas outras pessoas se interessaram em aprender a pintar e, já no ano seguinte, ela começou a ministrar aulas em outras cidades, incluindo turmas em escolas brasileiras. “Chegou um momento em que eu não dava conta sozinha. Meu marido também largou o trabalho na fábrica e passou a me ajudar a organizar e administrar os cursos”, orgulha-se.

 

Atualmente, as aulas itinerantes de Paula percorrem diversas cidades das províncias de Aichi, Gifu, Mie, Shiga e Shizuoka – são cerca de 700 alunos ao todo, incluindo não apenas brasileiros, mas também japoneses e estrangeiros de outras nacionalidades. O êxito também tem rendido a ela convites para participar de exposições e curadorias de arte – como a da Expoart Brasil.

 

Liberdade e caminhos

 

Uma das alunas de Paula é Silvia Sano, 53, que teve um de seus quadros escolhido para participar da Expoart. Ela ainda vê a pintura como um hobby – no dia a dia, trabalha com traduções e telefonia.

 

“Assim como alguém que gosta de pescar, ler ou ir para o bar, a arte é minha terapia. As tintas me fazem relaxar e, enquanto pinto, consigo refletir sobre coisas do dia a dia, organizar meus pensamentos, elencar as prioridades da vida”, define a moradora de Obu (Aichi), que, entre idas e vindas, possui 23 anos de vivência no Japão. “Mas liberdade é a palavra que mais combina com o que eu entendo por arte. Liberdade de criar e recriar, inventar, ousar, extravasar sentimentos, fugir de rótulos e padrões.”

 

Silvia: “As tintas me fazem relaxar” – Foto: ©Ewerthon Tobace/Record TV Japan

Sobre “fugir de padrões”, aliás, Silvia entende que a arte propicia que qualquer pessoa possa ampliar perspectivas – ou passar a enxergar outras, inclusive de outros ângulos. “Acredito que, no Japão, muita gente fica limitada numa rotina de trabalhar, ir para casa, comer e dormir, para fazer compras e faxina no final de semana e retomar esse ciclo limitado na segunda-feira”, opina. “A arte me ajuda a repensar minhas prioridades e entender que não existe só esse roteiro, que podem existir caminhos alternativos. Não podemos desistir dos nossos sonhos, nem deixar de tentar ou ousar.”

 

‘Terapia’ das tintas

 

“Caçula” desta reportagem, Liken Fushiki, 21 anos, de Nagoya (Aichi), participa de uma exposição pela primeira vez – neste caso, a 37ª edição da Foreign Artists Exhibition (Exposição de Artistas Estrangeiros), no Centro Internacional de Nagoya (Kokusai Center). A tradicional mostra termina neste domingo (6), com visitações gratuitas permitidas das 10h às 17h, nas salas 1, 2 e 3 do 4º andar.

 

Liken: “Eu estava entrando em depressão e a pintura me ajudou muito” – Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Liken conta que o interesse pela arte surgiu por influência de sua irmã mais velha, Camila, 22 anos. “Ela desenha muito bem e sempre foi minha inspiração”, afirma a irmã-coruja. Aos 17, Liken enveredou para a pintura com tinta acrílica, atividade que se tornou uma “terapia” em um momento de dificuldades emocionais. “Eu estava entrando em depressão e a pintura me ajudou muito. Pintar me distrai, me transporta para outros lugares, e ter liberdade para trabalhar com as cores faz com que eu me sinta bem. A arte me emociona tanto que, às vezes, chego a chorar enquanto pinto.”

 

Animada com sua primeira participação em uma exposição, em que participa com quatro quadros Liken espera poder exibir suas obras em mais eventos do tipo. E pensa em convencer a irmã que a inspirou a começar a desenhar. “Os desenhos dela são maravilhosos, mas ela não costuma mostrar para ninguém”, afirma. “Vou incentivar ela a expor também. Já que ela me inspirou a abraçar a arte, quem sabe agora não haja uma inversão de papéis e seja a minha vez de inspirá-la de alguma forma?”, brinca.

 

Despertar emoções

 

Participante das duas exposições já mencionadas, Marcia Shiono, 42 anos, de Kakamigahara (Gifu), também é aluna da curadora Paula. Ainda que leve jeito e goste de desenhar desde a infância, só decidiu aprimorar este talento há dois anos, quando começou a aprender as técnicas de pintura – com tintas acrílica e a óleo.

 

Marcia: “esse poder humanizador me fascina e me motiva a seguir desenhando” – Foto: ©Ewerthon Tobace/Record TV Japan

“Sempre tive facilidade com trabalhos manuais, mas só descobri este talento aos 40 anos porque sou meio ‘maníaca’ por cursos e fiquei muito interessada quando soube de um curso de pintura”, lembra ela. “Já vendi alguns quadros e dei outros de presente. A reação positiva das pessoas diante de uma obra minha me anima a acreditar neste hobby, até mesmo para que ele se torne meu principal trabalho.”

 

Evangélica, Marcia tenta transpor para as telas seus sentimentos e princípios. Para tanto, tem se especializado em pintar felinos – inspirada na menção bíblica de Jesus Cristo como ‘Leão da tribo de Judá’. “Comecei a fazer várias pinturas desse estilo para homenagear ou presentear pessoas próximas, incluindo referências de fé e familiares, para pessoas que perderam algum ente querido, por exemplo”, menciona a artista.

 

“Minha sogra tem cinco netos que nunca puderam se reunir fisicamente e pintei uma tela com a imagem dela junto a todos eles. A felicidade dela ao ver o quadro é algo que não tem preço para mim”, emociona-se Marcia. “O que mais me satisfaz é isso, poder despertar emoções nas pessoas, consolá-las, alegrá-las, dar a elas esperança e fazê-las contemplar os traços de tinta que eu imprimi em um trabalho. Esse poder humanizador me fascina e me motiva a seguir desenhando, pintando e acreditando na magia da arte.”

 

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