Com capacetes cor-de-rosa e muita coragem, brasileiras são cada vez mais numerosas em um ofício predominantemente masculino, em que batem de frente com preconceitos e conquistam autonomia
Texto: Gilberto Yoshinaga/Record TV Japan
A história da maioria delas é bastante parecida: em determinado momento, precisaram melhorar sua renda para conquistar autonomia financeira; e encontraram essa solução enveredando para o trabalho com solda, um meio predominantemente masculino – portanto, com obstáculos que vão além do ofício em si, como machismo e preconceito.
Essa afinidade, inclusive, fez surgir entre muitas soldadoras brasileiras no Japão uma união que, garantem as próprias, vai além da amizade. “Eu digo que nós, soldadoras, nos tornamos uma ‘família’. E me orgulho muito de poder colaborar para que muitas mulheres superem momentos difíceis, descubram que somos muito fortes e conquistem independência, inclusive financeira”, define Manu Barão, 42 anos, professora de solda e referência para suas discípulas.
Mas essa história inspiradora teve início de forma tensa e conturbada. Quando chegou ao Japão, em 2004, Manu vivia uma crise no casamento. O marido bebia muito e a agredia. “Um dia, ele me ameaçou com uma faca no pescoço e decidi fugir. Assim que ele saiu para trabalhar, peguei meus dois filhos, Guilherme e Thomaz [à época, com 4 e 5 anos de idade], e me mudei para outra cidade, com apenas 30 mil ienes no bolso”, lembra ela. “Logo percebi que, em um emprego convencional em fábrica, eu não conseguiria criar os garotos. Precisava ganhar mais, precisava conquistar autonomia financeira de alguma maneira.”
Manu não se envergonha de contar que a solução imediata foi trabalhar em um snack bar (“sunako). “Um dia, estava em um supermercado com meus filhos e me deparei com um frequentador da casa. Fiquei muito envergonhada”, conta. “Foi quando percebi que aquilo não era para mim. Eu queria ter um trabalho que não fosse motivo de vergonha ou constrangimento para os meus meninos, mas que os deixasse orgulhosos de mim.”
Do ‘bullying’ ao êxito
Um amigo sugeriu que uma boa maneira de ela melhorar sua renda seria virar soldadora. Determinada, optou por aprender uma das modalidades mais pesadas do ramo, a solda naval. “Sofri ‘bullying’ e fui menosprezada por muitos homens que achavam que eu não conseguiria. Mas não desisti, pois não havia outra opção e meus filhos dependiam de mim”, recorda Manu. Persistente, ela aprendeu o ofício e se destacou a ponto de um navio brasileiro que passava pelo Japão contratá-la, em 2010, quando o Japão ainda vivia a crise decorrente do Lehman Shock – bancarrota do banco norte-americano Lehamn Brothers. Então, passou seis anos no Brasil, trabalhando para o Estaleiro Atlântico Sul e para uma metalúrgica multinacional.
Em dezembro de 2015, Manu voltou para o Japão – sempre criando os filhos sozinha. Em 2019, tornou-se professora de solda e abriu a escola técnica Manu Barão Treinamentos, em Chita (Aichi). Desde então, já formou cerca de 400 soldadores – 25% são mulheres. Muitas possuem histórias semelhantes à dela, de terem optado pela profissão como uma maneira de conquistar autonomia financeira.
Autoestima elevada
Uma delas é Tatiani Tomiko Vargeti Shigemoto, 37 anos. Depois de se divorciar, há quase quatro anos, ela passou a procurar um trabalho em que pudesse ganhar bem sem precisar cumprir muitas horas extras – já que tinha de conciliar seu tempo com a criação de dois filhos, uma menina de 9 anos e um menino de 7, que é autista.
“Pesquisei várias opções e me chamou a atenção existir um curso de solda voltado para mulheres. Foi a melhor coisa que podia me acontecer”, diz ela, que, desde maio de 2020, solda peças para navio em uma empresa localizada em Toyohashi (Aichi), onde mora. “Minha renda já aumentou uns 70% e ainda há a possibilidade de melhorar mais, porque a empresa cogita me registrar como ‘shain’ [contratada direta]. Além de me proporcionar essa autonomia financeira, a solda elevou minha autoestima. Hoje sei que posso conquistar mais coisas, por mim e pelos meus filhos”, orgulha-se Tatiani.
‘Sei que deixei portas abertas’
Também divorciada, Andréa Serikawa, 48 anos, tem três filhos já adultos, dos quais dois estão no Brasil. Mora com o caçula de 20 anos em Komaki (Aichi). “Em 2020, no auge da pandemia, passei quase um ano desempregada, mas tinha uma reserva financeira. Então, decidi investir em cursos, porque acredito que a qualificação é um diferencial que pode garantir estabilidade nesses momentos de crise”, conta. Na época, ela tirou habilitação para dirigir caminhão e fez cursos de empilhadeira e solda.
“Realmente meu salário melhorou bastante desde que comecei a trabalhar como soldadora. Mas há outras conquistas que vão além do aspecto financeiro”, analisa Andréa. Atualmente, ela está em seu terceiro emprego no ramo da solda e, nos três casos, viveu uma mesma situação: foi a primeira mulher a ser contratada e, por isso, viu muitos homens duvidarem que pudesse dar conta do recado. “Nas duas empresas anteriores, sei que derrubei esse preconceito e deixei portas abertas para outras soldadoras. E, no emprego atual, hoje em dia recebo elogios do mesmo chefe que, no início, achava que eu não seria capaz.”
‘Sou teimosa, não desisto fácil’
Analista de sistemas, há três anos Priscilla Ki, 35 anos, decidiu abandonar o emprego que tinha em São Paulo para vir ao Japão trabalhar em fábrica. Pesquisou maneiras de obter um bom salário sem precisar se desgastar em muitas horas extras e, ainda no Brasil, fez um curso de solda.
“Aprendi, mas ainda não tinha prática. E a certificação obtida no Brasil não tinha validade no Japão. Então, soube do curso ministrado pela Manu e resolvi me matricular”, conta ela. Com a certificação nipônica em mãos, ela percebeu que precisava adquirir experiência na solda, ainda que tivesse de aceitar remunerações inferiores ao que esperava. “Cheguei a ter depressão por me questionar se havia tomado a decisão errada. Mas sou teimosa, não desisto de nada facilmente, e resolvi persistir mais um pouco.”
Em busca de mais aprendizado e experiência, Priscilla perambulou por milhares de quilômetros, onde as primeiras oportunidades surgiam, tendo trabalhado nas províncias de Chiba, Hiroshima e Fukuoka. Há seis meses, está empregada em uma metalúrgica localizada em Nirasaki (Yamanashi). “Sofri muito preconceito por ser mulher, estrangeira e baixinha, o que faz muitos homens duvidarem da minha capacidade”, diz ela, que tem 1,47 metro de altura. “Mas superei esses obstáculos e hoje amo e me orgulho muito do que faço. Sou a única mulher do setor em que trabalho e o chefe me escolheu para ser a soldadora, enquanto outros sete homens só fazem a montagem das peças.”
Empoderamento feminino
Mentora de muitas soldadoras, a professora Manu reconhece que a solda se tornou um “instrumento de empoderamento” para muitas discípulas, algumas delas com histórias de vida semelhantes à sua. “Independentemente de ser no ramo da solda ou qualquer outro, o importante é dar esse estalo, podermos perceber que temos força e capacidade para fazer qualquer coisa”, filosofa. Ela garante que um soldador – ou soldadora – com boa qualificação e experiência pode chegar a ganhar até 3,5 mil ienes por hora.
Mais que ex-alunas, as soldadoras também criam laços em uma rede de apoio que não para de crescer. “Acredito que, como quase todas nós passamos por momentos difíceis semelhantes, na vida pessoal e profissional, a empatia fez surgir mais do que amizades. Somos como uma família”, orgulha-se Manu.
Em tempo: além do êxito profissional obtido, as atribulações da vida pessoal que a levaram ao caminho da solda ficaram no passado: atualmente com 22 e 23 anos, seus dois filhos são instrutores em sua escola técnica. Em agosto do ano passado, Thomaz, o mais velho, deu a Manu sua primeira neta, Alicia – promessa de que essa força feminina inspiradora seja perpetuada.