A questão voltou aos holofotes com a presença marcante de atletas tatuados nos Jogos Olímpicos em Tóquio
Texto: Ana Paula Ramos/Record TV Japan
Isis: “Eu sabia do preconceito, mas não imaginava que era tanto” – Foto: Arquivo pessoal/Cedida
Tatuagem é uma arte comum em muitos países, mas não no Japão. Na terra da yakuza, os desenhos no corpo são considerados indicativos de que a pessoa está envolvida com grupos mafiosos e atividades ilícitas.
E isto está longe de ser coisa do passado. Embora o ato de se tatuar tenha se tornado popular no mundo, a sociedade japonesa ainda enfrenta dificuldades de desassociar a arte na pele da cultura do crime organizado. No arquipélago nipônico, estrangeiros que aderiram à moda sofrem discriminação, olhares condenatórios nas ruas e são proibidos de entrar em vários locais de lazer.
A ocorrência dos Jogos Olímpicos em Tóquio colocou a questão em evidência, depois que diversos atletas entraram em cena com os corpos tatuados. Algumas matérias de portais japoneses destacaram as tatuagens dos esportistas. Um artigo do The Row mostrou que pelo menos 13 atletas tinham o símbolo dos Jogos Olímpicos em alguma parte do corpo, destacando a importância do evento em suas vidas.
O Twitter japonês foi a loucura com o judoca brasileiro Daniel Cargnin, que fez bonito com a medalha de bronze e, de bônus, exibiu um peitoral decorado com os ideogramas de família (kazoku / 家族). A tatuagem causou estranheza e comoção nos japoneses, que entenderam que o atleta pintou no peito algo que possui muito valor em sua vida, ao mesmo tempo em que dedicou a vitória à mãe.
Longe dos tatamis e do pódio, os brasileiros que vivem no Japão e cultuam a arte da tatuagem não possuem vida fácil. A discriminação é rotineira, seja na rua ou no trabalho. É preciso aguentar os olhares de desprezo, esconder o corpo no auge do verão e torcer para não cair na entrevista de emprego simplesmente por ter uma tatuagem.
A Record Japan TV conversou com alguns trabalhadores tupiniquins que já se acostumaram com o preconceito no dia a dia, mas não deixam de fazer o que gostam e ter tatuagem é algo no qual não abrem mão.
Olhares e julgamentos
Bárbara Eiras Araki tem 27 anos e 14 tatuagens — mais da metade foi feita no Japão. Ela veio ao país pela primeira vez em 2017 e vive atualmente na cidade de Echizen (província de Fukui) com o marido, Luiz Araki, que também é adepto da arte no corpo. Quando as tatuagens são mais escondidas, os problemas são menores, já que geralmente não ficam visíveis. Só que este não é o caso de Bárbara, que compartilha a vida no país asiático através do Instagram.
“Tenho tatuagens nos braços, na mão, nas batatas da perna, nas costas, coxa, quadril e outros locais. Tenho um filtro dos sonhos ocupando as costas inteira, um raio na nuca, uma sereia na coxa, uma flor de lis no lado do ombro direito e por aí vai”, explicou.
Ela conta que já sabia sobre o preconceito que existe por causa da cultura da máfia, mas acreditou que a situação estava melhorando. No entanto, conforme foi fazendo novas tatuagens em partes visíveis do corpo, passou a sentir mais.
“Onde eu moro é interior e tem muitos idosos e pessoas sem acesso à informação. Sinto os olhares tortos, as crianças arregalam os olhos e tem gente que desvia o caminho. No trabalho é bem chato, temos que esconder tudo, usar luva para tapar a tatuagem na mão e não dá para usar nem brinco. Piscina é ainda mais difícil, pois querem que a gente esconda, mas só se for com roupa de mergulho”, diz.
Nestes anos de Japão, a brasileira lembra de uma experiência marcante e desagradável por causa das tatuagens. “O pior foi a vez em que entramos em uma loja e o produto que a gente queria não estava na prateleira. Abordamos uma atendente para perguntar se tinha no estoque e ela nos tratou muito mal, disse que não ia ver nada, mandou a gente embora, e depois saiu andando. Ficamos muito chateados e tentamos outra funcionária, que foi educada e achou o produto”, lembra.
A situação é lamentável, mas nunca desmotivou Bárbara com as tatuagens, que é algo que gosta muito de fazer. “Eu não ligo e quero continuar fazendo pelo resto da vida. Entendi que estou só de passagem pelo Japão e estou aproveitando. Não vou me privar de fazer algo que eu quero por conta da opinião dos outros”, diz.
Isis Horita, que tem 23 anos e mora em Gunma, também sentiu o preconceito na pele. A brasileira tem duas tatuagens, no braço e na cintura., ambas feitas no Japão. Ela conta que se surpreendeu quando passou a andar na rua com a tatuagem do braço a mostra.
“Eu sabia do preconceito, mas não imaginava que era tanto. Só descobri mesmo depois de fazer. O olhar de julgamento dos japoneses é demais. Quando vou em uma piscina precisa ser de manga comprida e nas entrevistas de emprego eles não podem nem sonhar que tenho tatuagem. Em parques, escolas e muitos locais eu preciso tapar”, conta.
Ela já passou por uma situação constrangedora no antigo trabalho, em um dia em que foi ao serviço de camiseta e o chefe disse para não usar mais. “Tive que usar manga comprida por baixo do uniforme, pois não poderia mostrar a tatuagem por causa dos clientes”, explica.
A situação a deixa chateada, principalmente por causa das limitações no dia a dia.
“É muito chato chegar em lugares com placas de proibido tatuagem, pois isto não define caráter de ninguém. Nós nos sentimentos limitados em muitas coisas aqui. Sempre precisando esconder ou mentir. Acho o Japão um país maravilhoso, mas muito atrasado nesse sentido”, opina.
A brasileira que removeu a tatuagem
O preconceito foi demais para Matsue Seii, de 42 anos, que morou por oito anos no Japão, de 1998 a 2006. Matsue, que atualmente reside em Bauru (São Paulo), conta que sofreu tanta discriminação na época em que morava em Shiga que acabou decidindo remover a tatuagem que tinha no braço.
“Na época eu não sabia sobre o preconceito. Eu tinha uma amiga com uma tatuagem no antebraço e achei que era tranquilo. Fiz um dragão com uma cobra no meu. Só que depois que eu fiz, minha amiga me perguntou porque eu tinha feito justo ali”, relatou.
As palavras da amiga foram quase como uma premonição. A brasileira logo passou a sofrer na rotina por ter uma tatuagem visível. “Tudo mudou depois da tatuagem. Eu fui me inscrever em uma academia e não deixaram porque era proibido. Onde eu consegui, tinha que usar algo que tapasse a tatuagem e eu não deveria usar o chuveiro para não perturbar os outros”, disse.
E não foi só isso. Matsue também sofreu preconceito na rua, trabalho e locais públicos. “O lugar mais incômodo era o supermercado. Aqueles olhares horríveis como se tivessem olhando para uma bandida. Comecei a me sentir envergonhada a ponto de esconder a tatuagem em todo lugar que ia. Sofri por um bom tempo até ver um anúncio de retirada de tatuagem”, contou.
Ela foi para Tóquio atrás do anúncio, mas descobriu que era mentira. Depois encontrou um local que removia a laser em Nagoia (Aichi) e iniciou as sessões. “Foi muito doloroso, como levar chicotadas na pele. Depois ficou como uma queimadura. Fiz cinco sessões e tudo começou a melhorar na medida em que a tatuagem sumia, por incrível que pareça, o preconceito foi embora”.
Matsue tem outras duas tatuagens, no tornozelo e nas costas. Quando voltou ao Brasil, não sofreu mais preconceito. Mesmo assim, não sente vontade de fazer de novo depois da experiência traumática no Japão.
“No Brasil eu me senti livre. Aqui nunca vi olhares de julgamento. Jamais imaginava que no Japão tinha tanto preconceito por uma coisa que é normal em muitos países. Soube por amigos que dependendo do desenho é pior. Um amigo fez um tigre e levou até empurrão, era xingado em locais públicos”, lamentou.
Visão dos japoneses
De acordo com Yoshimi Yamamoto, professora de antropologia cultural da Universidade de Tsuru e autora de “Irezumi to Nihonjin” (Tatuagens e os japoneses, numa tradução livre), humanos em todo o mundo usam a tatuagem como método para decorar o corpo desde os tempos antigos.
Em uma reportagem publicada pelo jornal Mainichi, a pesquisadora explica que os japoneses tiveram várias percepções sobre a tatuagem de acordo com a região e a época. Mas a arte começou a ser vinculada com a máfia nas décadas de 60 e 70, principalmente por causa dos filmes e programas de tevê. Associado a isso, em 1992 foi introduzida a nova lei de prevenção de atos ilegais por membros de grupos organizados, que levou hotéis, casas de banhos e outros estabelecimentos a proibirem a entrada de clientes tatuados.
“Essa controvérsia é muito semelhante ao problema das regras ultrajantes das escolas de primeiro e segundo grau, que instruem os alunos a pintar o cabelo de preto”, compara Yamamoto. “Isso é fazer é uma prática comum julgar as pessoas com base apenas em sua aparência e ignorar seus direitos”, opina a professora. “Não posso negar o fato de que algumas pessoas se sentem desconfortáveis com tatuagens, mas sugiro que paremos de excluir outras com base em conceitos fixos e negativos e comecemos tentando conhecer a outra pessoa.”